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  • Dançando na Chuva

    Renato mora em uma pensão no centro da cidade. Toca piano pra ganhar a vida. Toca bem, é talentoso. Quando fecha o bar do hotel onde trabalha, geralmente vai com Fred, porteiro do hotel, jogar sinuca e beber mais um pouco. Fred é grande, lento e intelectual. Gosta de citar Kierkeegard e Kant. Gosta de dizer que filosofia mesmo se fez na Alemanha e o resto é literatura. Mas não diz isso pra todo mundo. Renato às vezes sai sozinho. Deixa a gravata e o casaco no vestiário dos funcionários do hotel e sai. Gosta de caminhar com o sol amanhecendo. A sensação de estar indo pra mais uns drinques enquanto todos estão indo pro trabalho lhe revigora. Também lhe agrada a idéia de ganhar dinheiro de algum bêbado no jogo de sinuca. Agrada mais ainda se quem perde no jogo quer brigar.

    Aprendeu piano com o marido da mãe, que depois do acidente nunca mais tocou. Mesmo quando a mãe saiu de casa ele continuou lá. Gostava de Alfredo. Só saiu quando foi morar em Taquaruçu, interior de Goiás. Foi lá que aprendeu a jogar. Ficou lá por dez anos, escondido. Alfredo foi quem lhe arrumou os documentos falsos, algum dinheiro e um local pra ir depois que chegou com a roupa suja de sangue e um revólver no bolso do casaco. Quando voltou o apartamento continuava igual, o piano no mesmo lugar. Limpo e intocado. Alfredo o recebeu bem, mas achou melhor não voltar a morar ali. Visitava-o com freqüência. Alfredo gostava de lhe ouvir tocando, fechava os olhos como para ver os acordes pela sala. “The lunatic is in the hall. The paper holds their folded faces to the floor, And every day the paper boy brings more.”(*)

    Fred não quer ir beber nem jogar com Renato. Diz que a moral é relativa, o homem nasce bom, a sociedade é má e precisa ir pra casa ver a família. Renato não pensa em família nem na sociedade. Nem no piano mais, agora é um trabalho como qualquer outro. Pensa na sinuca e em quem perde. Ganha o jogo, ganha força, ganha a briga, ganha as ruas e só tem tempo de meter as mãos ensangüentadas no bolso antes de que quem viu a luta perceba que o corpo no chão não se mexe mais.

    Sem ter pra onde ir, sem Alfredo, sem futuro e com sol alto entra em um bar, pede um uísque e com as mãos sujas acende um cigarro e se deixa esperar a polícia. Enquanto espera pensa que podia estar tocando para Alfredo. “You lock the door, and throw away the key, There's someone in my head but it's not me.” (**)

    Deitado, os olhos abertos apesar das luzes todas apagadas, Renato pensa que, bem comportado como é, em no máximo dez anos poderá estar jogando sinuca novamente. Depois do jogo passará em casa parar lavar as mãos e pegar o cachorro. Pode ser que ainda lembre de Alfredo e corra enquanto o dia amanhece e mesmo com as nuvens no céu vai poder ver a sua sombra dançando na chuva enquanto o dia amanhece e as pessoas vão pro trabalho. Pode ser que lembre dos acordes e então cante: “And if the band you're in starts playing different tunes, I'll see you on the dark side of the moon.” (***)

    Luiz Müller

    (*) O lunático esta na sala, os jornais ficam virados pro chão, e todo dia o entregador de jornal traz mais.
    (**) Você tranca a porta, e joga fora a chave, há alguém na minha cabeça mas não sou eu.
    (***) E se a banda que você está começa a tocar diferentes melodias eu verei você no lado escuro da lua.
    (*) Trechos da canção Brain Damage, de Roger Waters, do álbum The Dark Side of the Moon.

    2 Comments:

    Anônimo said...

    As frases curtas do David e a marginalidade do Rubem...

    Unknown said...

    Fiz um comentario e nao o vi ai.Vou fazer de novo rsrsrsr.PARABENS,que vc postou o conto.Continue,coloque mais,gosto do modo como vc escreve.Beijos