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  • Bufo & Spallanzani - trecho

    "Um escritor está sempre trabalhando, não é?", disse Orion, o maestro, sentando-se ao meu lado. Na viagem de carreta Orion me havia perguntado, depois de se apresentar, qual era a minha profissão. Quis inventar uma profissão, mas nenhuma veio à mi­nha cabeça naquela hora, e acabei dizendo que era escritor.
    "Vendo o mundo à sua volta, metendo o nariz nas coisas (sem querer ofender), apropriando-se da alma das pessoas como uma ave de rapina metafísica (sem querer ofender), escrevendo livros que ninguém lê" — ele falava movimentando as mãos no ar, co­mo um maestro sem batuta, e tentava disfarçar com um sorriso as coisas desagradáveis que dizia.
    ''Words are, of course, the most powerful drug used by mankind", eu disse.
    "De quem é isso?", perguntou o maestro.
    Neste instante entravam na varanda Roma e Vaslav e as duas irmãs, Eurídice e Suzy. Ajeitaram-se nas espreguiçadeiras tirando-as da posição em que estavam, fazendo um semicírculo.
    "Kipling", eu disse.
    "Então o escritor é uma espécie de traficante de drogas."
    "Quem que é traficante de drogas?", perguntou Suzy.
    "O escritor. Foi o que o nosso escritor aqui disse. Em tese, é claro", disse Orion.
    "A coisa que eu mais gostaria no mundo era ser escritora", disse Eurídice.
    "Não é uma coisa muito difícil", disse Orion.
    "É um ofício como qualquer outro", eu disse.
    Enquanto isso chegavam à varanda Juliana (que se demorara repetindo as compotas da sobremesa) e Carlos.
    "Fazer música é mais difícil do que fazer literatura", disse o maestro. "Empregadas domésticas escrevem livros, militares re­formados escrevem livros, todo mundo escreve livro, mendigos, políticos, atletas, adolescentes perturbados, comerciantes."
    "Ladrões e funcionários alfandegários", eu disse, pensando em Genet e Kafka.
    "Isso mesmo. O Biggs", disse o maestro, "publicou um livro."
    Lembrei-me de uma frase de Maugham — it requires intelligence to write a good novel, but not of a very high order. Real­mente, não eram poucos os meus colegas de profissão cujo nível intelectual era muito baixo, mas não ia dar essa munição ao maes­tro. Maestros cretinos também deviam existir.
    "E o vento levou foi escrito por uma dona de casa velhota, que nunca mais fez nada", disse Orion, sem disfarçar a agressividade. O que teria causado aquela hostilidade? O meu tamanho?! Isso acontece muito, os sujeitos baixinhos ficam ressentidos por que sou grande e as mulheres me acham bonito.
    "O Orion disse, na hora do almoço, que o senhor está escrevendo uma história passada aqui no Refúgio, em que nós somos os personagens", disse Juliana amavelmente, tentando talvez mudar o tom da conversa.
    "Eu o vi olhando para nós e tomando notas", disse Orion.
    "Garanto que não é sobre vocês", eu disse. Se Roma não es­tivesse ali, fitando-me com um olhar enigmático que inflamava o meu coração, eu já teria ido para o meu bangalô há muito tempo.
    "Você mostra para a gente?", perguntou Eurídice.
    "Não gosto de mostrar o livro antes de terminar."
    "Então daqui a uns três dias ele mostra' , disse Orion.
    "Você escreve um livro em três dias?", perguntou Suzy.
    "Em três dias não."
    "Quantos dias se demora para escrever um livro?", pergun­tou Carlos, que até então estava em silêncio.
    "Depende. Flaubert demorou cinco anos para escrever Madame Bovary. Trabalhando muitas horas, todos os dias, sem pa­rar um dia."
    "Aquele livrinho?", perguntou o maestro.
    Pensei em contra-atacar falando mal de Mozart, mas seria ri­dículo demais.
    "Por outro lado, Dostoievski escreveu O jogador em trinta dias", eu disse.
    "Antigamente nos saraus dava-se um mote e o poeta compu­nha na hora um poema rimado e metrificado. Imaginem se músi­ca pode ser composta assim, à minuta, como batatas fritas", disse Orion.
    "Se eu der um mote, você escreve um poema?", perguntei.
    "Um poema não digo. A mim, particularmente, a poesia não agrada. Mas um texto de prosa, não só eu, mas qualquer um aqui escreve sem dificuldade."
    "Concordo com o maestro", disse Roma, em tom de brinca­deira, "dançar também é mais difícil do que escrever. Me dá o mote que eu faço o texto." Olhou para mim como quem diz, gos­taria de vê-lo fazer um entrechat ou mesmo um simples tour en l'air. Depois olhou para Vaslav e os dois riram, divertidos.
    "Quem mais se habilita?", perguntei.
    "Não sei ortografia", disse Eurídice.
    "Isso nenhum sabe, não é? Os revisores corrigem os erros or­tográficos dos escritores", disse Orion.
    "Fica combinado que erros de português não serão levados em consideração", eu disse.
    "Não vou entrar nisso não", disse Eurídice.
    "Eu entro", disse Suzy.
    "Juliana?", perguntei.
    "Meu negócio é cantar."
    "Que também é mais difícil do que escrever", eu disse, antes que alguém o fizesse.
    "Vaslav?"
    "Nunca concorro com a minha mulher."
    "Carlos?"
    "Não, obrigado. Ao contrário de todos, eu acho escrever mui­to difícil."

    1 Comment:

    Anônimo said...

    Anota aí que preciso pegar esse livro!